Rio de Janeiro, RJ, 1960. – Vive e trabalha no Rio de Janeiro, RJ.
Representado pela galeria A Gentil Carioca.
Indicado ao Prêmio PIPA 2010, 2011, 2014, 2016, 2017 e 2018.Vencedor do Prêmio PIPA 2018
A obra de Arjan Martins aborda a questão da diáspora africana e das migrações afro-atlânticas ocorridas na época colonial brasileira. Em seus trabalhos, o artista elabora pinturas cartográficas nas quais as rotas migratórias tomam a forma de grandes caravelas, sextantes e globos terrestres, como se transportassem todo o peso dos escravos deportados. As imagens de imigrantes e de descendentes africanos são parte fundamental do repertório do artista, que os retrata em ações cotidianas, desde sua chegada ao novo continente até os dias atuais.
Arjan realizou sua primeira exposição individual em 2002, “Desenhos”, no Museu da República, Rio de Janeiro. Dentre suas exposições individuais, destacam-se: “Américas”, com curadoria de Paulo Sérgio Duarte (MAM-Rio, 2014); “Et Cetera” (A Gentil Carioca, RJ, 2016) e “O Estrangeiro” (Brasilea Foundation, Basel, Suíça, 2017). O artista participou de exposições coletivas como: “Abre Alas” (A Gentil Carioca, RJ, 2009); “Do Valongo à Favela” (MAR, RJ, 2014); “Novas Aquisições” (2014) e “Arte Brasileira Hoje” (2015), ambas no MAM-Rio. Em 2005, recebeu o Prêmio Projéteis de Arte Contemporânea, da Funarte. No ano seguinte, 2006, participou da “Bienal de Dakar” e, em 2007, do “Haiti Sculpture”. Em 2017, Arjan foi contemplado com um prêmio de residência artística na África, promovido pelo Instituto Goethe na cidade de Lagos, Nigéria. Em 2018, participou da mostra “Fratura” no Instituto Tomie Ohtake, com curadoria de Paulo Myiada; integrou a exposição itinerante “Ex-África”, promovida pelo CCBB, com curadoria de Alfons Hug e participou da 11º Bienal do Mercosul.
Textos Críticos
Por Fernando Cocchiarale
Setembro de 2002
Os desenhos de Argentino Mauro, o Arjan, nascem no próprio ato da execução. Entretanto não decorrem de procedimentos aleatórios cuja finalização seria casual ou sem qualquer identidade. Seu conjunto possui uma evidente autoria já que não só de um ponto de vista do processo de produção, quanto da temática, estas imagens possuem traços em comum.
O claro diálogo entre os trabalhos de Arjan funda-se, pois, no próprio processo criativo. Argentino integra a legião de artistas cuja obra é concebida não como o resultado de um projeto (isto é da antecipação dos resultados finais da obra antes de sua efetiva execução), mas da expressão das pulsões e tensões do seu universo interior ao longo do processo de feitura do trabalho. Nesse sentido não seria equivocado vinculá-lo, desde que ressalvadas certas condições, à genealogia expressionista.
Delineada a partir do Fauvismo francês e do Die Brücke alemão, 1905, esta genealogia configurou-se como um ismo no Der Blaue Reiter, proposto na Alemanha de 1911. Conforme o historiador italiano Giulio Argan, “Literalmente, expressão é o contrário de impressão. A impressão é um movimento do exterior para o interior, é a realidade (objeto) que se grava na consciência (sujeito). A expressão é um movimento inverso, do interior para o exterior, é o
sujeito que se manifesta no objeto (1)”.
Nesse sentido, antes mesmo de sua existência enquanto um dos ismos da vanguarda histórica da primeira metade do século passado, a tendência ao expressionismo era (e ainda segue sendo) latente ao temperamento de muitos artistas. Legitimada pelo sentido trágico-romântico de cultura alemã e da psicanálise, sua emergência no cenário pioneiro da arte moderna apenas dava vazão a uma escolha estética atípica em relação à objetividade das novas linguagens plástico-formais e, portanto, mais próxima da invisível vida interior de um Sujeito-artista . Agora, porém, diferentemente do passado pré-moderno, esta tendência podia coexistir com suas antípodas, no universo e relativo plural das vanguardas.
Desde então, sempre que a arte pretendeu romper ou afastar-se do campo de questões estéticas e artísticas de feição mais cerebral, esta tendência foi retomada em bases novas: o expressionismo abstrato americano (década de 1950) e o neo-expressionismo alemão (década
de 1980), por exemplo., ao revalorizarem as pulsões emanadas das entranhas da condição humana, trouxeram com eles a valorização de pinceladas e traços de gesto ágil, cuja ordenação, na obra, prescindia do projeto.
Exceção feita ao expressionismo abstrato, os repertórios temáticos de genealogia expressionista comumente valorizaram os dramas da alma humana por meio de ícones do corpo mortificado ou em extrema tensão. Este é o pano de fundo das dezenas de desenhos
apresentados nesta mostra por Argentino Mauro.
Do ponto de vista icônico Argentino não foge das expectativas genealógicas dos expressionismos. Ele concentra-se no corpo humano, embora jamais insira-o numa espécie de composição cenográfica típica da de seus colegas alemães históricos. O ambiente em que seus corpos gráficos aparecem, quase sempre fragmentados em seus aspectos mais expressionais (como o rosto, por exemplo), é o próprio papel, sujado por sequelas das manchas aguadas e do desenho. Até mesmo nos trabalhos dos fetos, desenhados por inteiro,
a fragmentação se consuma. Separados do corpo materno no qual deveriam se inscrever seus embriões flutuam num fundo sem identidade. A este repertório de imagens somam-se outras, não menos intensas, constituídas por rostos masculinos crispados, caveiras e ícones similares. Há portanto uma rapidez nos desenhos que resulta numa profusa produção quase obsessiva que suscita uma exibição condensada de dezenas trabalhos tal como na presente exposição.
Parte significativa dos seus trabalhos inicia-se a partir de manchas aquareladas de coloração carnal potencialmente dramática. Elas combinam simultaneamente uma atitude previsível e expectativas aleatórias, ambas parciais: a que controla sua área de incidência desejável e aquela que, disponível para o acaso, assimila resultados imprevistos, mas favoráveis aos passos seguintes. Em seguida, superposto às manchas, começa o desenho, num traço espontâneo e nervoso que percorre o branco do papel, sem recobri-lo, mas sujando-o com a densidade das imagens que cria. No entanto Arjan não explora o contraste dramático entre zonas de intensa luz e de pesadas sombras que levou, por exemplo, os expressionistas
alemães históricos à intensa investigação do universo gráfico, especialmente o da xilogravura. Ele consegue preencher o espaço em branco do papel mesmo com a preservação de áreas consideráveis sem qualquer ocupação pelo gesto gráfico criador.
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“Arjan: a pintura e suas vozes imprevistas”
por Luiz Camillo Osorio
O que faz um artista pintar hoje? A rapidez com que fotografamos e disseminamos imagens no mundo atual potencializa a tese da reprodutibilidade benjaminiana e parece transformar a pintura com sua materialidade densa em uma coisa do passado. É como se a imagem se descolasse completamente de qualquer presença física e se tornasse mero reflexo sem corpo. Voltar a atenção para a pintura, todavia, não implica recusar as possibilidades do mundo virtual, o império do simulacro e a sedução da rapidez. Entretanto, há algo no fazer pictórico que merece um cuidado crítico especial e que nos obriga a pensar sua necessidade, não pela atualidade histórica, mas justamente por seu anacronismo – por não se adequar a este tempo, não estar conforme às condições hegemônicas do sentir contemporâneo. O tempo da fatura e o tempo do olhar na pintura são lentos – quando ela nos toca, somos obrigados a parar e a reparar cada detalhe e o todo.
É pela perspectiva deste anacronismo potente, que abre novas formas para o sentir atual, que quero falar da pintura de Arjan Martins – recentemente exposta na galeria A Gentil Carioca do Rio de Janeiro. Sua pintura existe simultaneamente enquanto exercício moderno de problematização dos dados da percepção e como explicitação contemporânea de vozes excluídas que se mobilizam pela criação de outros repertórios imagéticos. De um lado, há uma pintura que recusa a transparência comunicativa na busca por uma materialidade pictórica que se sabe pertencendo ao universo simbólico do “museu imaginário”. De outro lado, vemos uma vontade de fala da pintura quebrando os limites deste universo encantado do museu e buscando incorporar códigos e signos historicamente excluídos.
O fato de Arjan ser um pintor negro é uma maravilha e pode ser também um problema. Uma maravilha, pois enfrentou e superou todas as barreiras de classe e de raça que inibem historicamente a mobilidade de camadas consideráveis da população brasileira condenadas a não existir plenamente – a não ter voz nem representação social. Contudo, pode ser também um problema caso sua pintura fique condenada a ser apenas e exclusivamente voz da exclusão e de afirmação identitária. Há que se fazer a conquista da voz ser concomitantemente um afirmar e um deslocar do problema identitário, ou seja, garantir à sua pintura devires inesperados extraídos do fato pictórico. A partir daí pode-se imaginar a articulação entre o que se espera da sua pintura (afirmação de uma visualidade minoritária) com o que a faz ser para além de qualquer expectativa (afirmação de uma diferença na visualidade comum).
Na pintura de Arjan percebemos um diálogo intenso com a tradição moderna da pintura ocidental – Goya, Manet, Bonnard, Iberê – e um desejo, não menos verdadeiro e relevante, de incorporar aí um repertório visual e uma narrativa afro-brasileira que esteve historicamente sem lugar de fala ou de visualização. Essa combinação de tradições – da forma pictórica moderna e da narrativa imagética contemporânea – não implica uma contraposição entre elas. Há que se incorporar a voz da exclusão na questão (e na sedução) da pintura enquanto tal. Escovar a história a contrapelo implica rever e refazer a forma como a história se fez contar. O que vemos na pintura de Arjan é a composição de duas práticas potentes de intransigência com o status quo. Ela quer contar a história do ponto de vista dos oprimidos, ou seja, dar visibilidade ao outro. Entretanto, a essa prática de resistência soma-se uma outra, que resiste a ser mera narrativa, apenas informação sobre o fato da opressão e impõe ao aparecer da alteridade uma opacidade inerente à expressão pictórica. Neste aspecto, a opção pela pintura (com seu anacronismo e suas tradições) foi um dado interessante na poética e na política de Arjan.
Os rostos de muitas de suas figuras negras são recorrentemente borrados de tinta e de pinceladas aflitas e elegantes. Ao mesmo tempo em que remetem a uma identidade rasurada, traduzem esta negação da imagem/identidade com uma contundência gestual que multiplica as direções expressivas contidas na forma. É uma outra maneira de compreendermos o que Deleuze chamava, na pintura de Francis Bacon, de uma transposição do pessimismo cerebral em otimismo nervoso. Essa transposição é algo contido no gesto da mão que pensa e faz ver algo do que não estava visto ou sentido de antemão.
De maneira bastante explícita as pinturas de Arjan evidenciam as dores da colonização e da opressão escravocrata – ainda tão presentes em nossos conflitos sociais cotidianos – mas fazem isso com uma exuberância violenta da forma, que não se deixa domesticar em ilustração. A violência da sensação e não a do espetáculo, como dizia Deleuze. Ser mais que ilustração e espetáculo é o que nos puxa para dentro das pinceladas, nos retêm a atenção, nos põem em um estado de intensidade maravilhada diante do mero aparecer de formas e cores. As imagens intensificam as formas e vice-versa.
A afirmação de uma identidade étnica não deve limitar a afirmação de uma diferença estética. O fato de Arjan ser um pintor negro impôs-lhe certo repertório imagético, que o faz falar de um determinado lugar; mas a qualidade estética de sua pintura faz com que esse lugar, mesmo afirmado, não fique condicionado a um endereçamento específico e multiplique seus efeitos e afetos. Sua identidade se desdobra e se traduz em formas expressivas indeterminadas, que falam simultaneamente de uma exclusão e de uma inclusão, de pertencer a uma história particular e deslocá-la para outros lugares de fala e de visibilidade.
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